Com a crescente expansão da produtividade da agrofloresta no campo, e a agroecologia brasileira se firmando cientificamente como cultura sustentável própria, as Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSAs) e outros grupos locais fomentam novos ecossistemas econômicos, como microinvestidores. Tornam-se modelos potentes que fecham o ciclo da produção de alimentos de forma naturalmente equilibrada.

Para a paulista Camila Andrietta, por exemplo, a possibilidade de participar de uma CSA nasceu principalmente da necessidade: “Eu tive dois filhos alérgicos que realmente não podiam comer nada que não fosse orgânico [ou sem agrotóxicos]. Se não fosse nesse modelo, seria inviável financeiramente”, conta ela. Também para criar melhor ambiente para os filhos, Giovane Salvadori, em Curitiba, faz parte da CSA Bocaiuva e se vê como integrante de uma “família empreendedora”.

Produtores e consumidores, chamados de coprodutores, trabalham juntos em uma cadeia de consumo organizado que sustenta certos tipos de atividades agrícolas. Na CSA que Giovane está, paga-se o valor trimestral de R$ 315 com antecedência tendo de 3 a 6 kg de alimento na mesa, semanalmente. Ele e a companheira deixaram de ir ao supermercado para a alimentação deles e dos dois bebês, de vez em quando na feira para itens especiais. Mas pela cesta do CSA os produtos são  mais diferentes, uma cesta mais volumosa, uma abundância cultural.

Uma revolução de consumo

Na Índia, a “revolução do consumo” já foi realizada no pós-colonização e ficou conhecida como Swadeshi, que significa “consumo local”. Exemplos como o do Banco Palmas, de Tocantins, mostram que se o dinheiro fica na região, seu valor é multiplicado, a riqueza circula na própria cidade ou comunidade. No caso do setor de alimentos, organizações, fundações e governos  vêm trabalhando, pelo mundo, para contribuir com mudanças entre os pequenos e grandes agricultores: “O mercado de comodities está fadado a desaparecer por obsolescência”.

E o que nós, meros “comedores” podemos fazer, além de esperar que o preço desses produtos abaixe? Como fazer para comer alimentos saudáveis sem financiar uma boutique chique de orgânicos? Giovane conta que é estar atento a todo um ciclo que se transforma a partir dessa iniciativa: “A gente está investindo vários valores, dinheiro, e isso volta. De um tempo para cá, isso começa a preencher nosso alimento diário. O nosso dia a dia fica muito saudável. Então, temos retorno do alimento, da parceria, do empreendimento, de ser ativo”, resume ele.

Os benefícios financeiros do modelo podem ser tão positivos quanto os ambientais. Eliminação de intermediários, corte de custos – com transporte, pedágios, embalagens, comercialização, administrativo. Aumento de 50% no salário dos agricultores, segundo banco de tecnologias sociais da Fundação BB. Fim da compra que somente gera escassez. Divisão de tarefas, gestão rotativa, tentativa e erro, trabalho de grupo, criação de comunidade. Todos entendem a integralidade do processo, um agroecossistema diferente em sua totalidade que passa a existir.

Microinvestidores agroflorestais: quem são e empreendem com o quê?

Para Wagner Santos, um dos diretores da CSA Brasil, organização que fomenta esses agroecossistemas no país, “a CSA é um impulso social, acima de tudo”. O formato existe desde a década de 1980, surgido do conceito da economia associativa, baseada na anterior filosofia do alemão Rudolf Steiner, a antroposofia.

Wagner garante que os princípios de comunidade podem ser aplicados a qualquer tipo de atividade econômica. No Distrito Federal, por exemplo, há uma “recriação” desse sistema que se chama Comunidade que Sustenta a Agricultura, a Saúde e a Educação. Só em Brasília são 20 CSAs, e pelo menos 130 espalhadas por todo o país.

Com a rede formada, cada um se identifica com uma tarefa, mas tudo é compartilhado, com diferentes níveis de horizontalidade em cada uma das CSAs. “Não se busca recurso fora, se busca dentro”, explica Wagner. “Esse grupo de pessoas  dividirá entre elas as necessidades do sítio, do organismo agrícola, e junto, se consegue prover que essa sustentação aconteça”. O projeto e o orçamento são traçados para se tornarem mais viáveis ao longo do tempo, inclusive, do ponto de vista econômico.

Pessoas jurídicas também podem investir sendo este o diferencial do seu empreendimento: a proximidade com os produtores, a qualidade do produto e sobretudo o ambiente que se cria. “Hospitais, escolas, ou o dono de um restaurante, por exemplo, é como se fossem 100 famílias. Na Bahia, tem uma CSA que se vincula a restaurantes, em Piracanga, uma cidade bem turística. Indiretamente, cada cliente do restaurante está também sustentando um organismo agrícola”, conta Wagner.

Cada um investindo, seja com trabalho ou com dinheiro, nessa nova forma de se relacionar com a terra, nos serviços ecossistêmicos que a natureza provém: “Para que esse espaço continue fornecendo comida de verdade, seja um espaço de preservação da natureza, seja um espaço de manutenção da biodiversidade ou da manutenção da soberania alimentar através da conservação e criação de sementes, eu,  como cidadão preciso ter uma ação no mundo, nesse sentido”, conclui Wagner.

“Vida agroflorestada”

Lilian Alves estava retornando para sua cidade natal, Atibaia, onde iria trabalhar na pequena produção de queijos dos pais, quando conheceu uma CSA. Saía do convencional de uma indústria têxtil que a ocupou por décadas para voltar, resgatar antigos valores, ideias, atitudes. Sem saber que já havia encontrado o que procurava, anunciou na primeira reunião que participou da comunidade que não queria responsabilidades.

De início pensou: “contas a pagar e tudo aquilo parecia só um sonho para quem já tinha a vida resolvida”. Mas foi convidada novamente a estar por perto e, uma semana depois, viu-se colaborando, “com uma força que desconhecia”, e em 2016 o grupo começou a se consolidar. Ela deixava de lado a “falsa ilusão de estabilidade” para aos poucos entender que tipo de benefício estava recebendo na comunidade.

O organismo agrícola que Lilian e a comunidade apoiam tem hoje cerca de 100 pessoas associadas. Quatro trabalham na terra e cinco produtores bolsistas, que trabalham quatro horas por semana em troca da mensalidade da CSA. A partir do trabalho em torno da propriedade-floresta produtora de verduras, legumes e frutas, é justamente a economia que se cria.

A comunidade começa realizando oficinas, mutirões, visitas, eventos educacionais e culturais. Passam por compras coletivas, com mais cortes de custos, para trocas, até se tornarem uma verdadeira rede local. Foi assim que Lilian aumentou repentina e consideravelmente as vendas de queijos da sua família, assim como  cada membro passou a oferecer seu talento, produtos e serviços “com valor justo”.

Mas a base se firma antes, com trabalho intenso de “conscientização”, acredita Paulo Rodrigues, um dos precursores da prática. A própria natureza que dita a produção, que mostra aonde está a produtividade e a expansão. “Ao se alimentar bem, as famílias de coagricultores contribuem com a saúde própria, com a saúde do ecossistema e com a saúde financeira dos agricultores”, resume ele, o que acaba por afetar positivamente todo o sistema. Uma “agri-cultura” que ao invés de desencadear uma série de empobrecimentos, produz riqueza para todos os envolvidos.

Foi assim que a comunidade passou a estudar os conceitos de economia circular, economia solidária, colaborativa, compartilhada. Então, existem — e tendem a crescer — soluções e tecnologias que diversificam mais os processos. Que não são economia alternativas, e sim complementares. Está a ideia de convergência, entre esses modelos de descentralização e valorização.

Paulo procura traduzir: “A gente trabalha em sinergia com a natureza. É daí que vem o conceito de sintropia, [uma filosofia específica dentro do contexto] da agrofloresta. Estando tudo caminhando para o equilíbrio, a natureza é, pois tem a fórmula da economia perfeita. Não se desperdiça nada num ecossistema equilibrado. Nada é lixo e nada é extremamente valioso. Tudo faz parte de uma sintropia [e de uma entropia], um fluxo de crescimento sempre”.


Leia os outros conteúdos da série:

O impacto e a produtividade das agroflorestas no campo

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